Estudios Pedagógicos, Monográfico Extraordinario: 311-325, 2012

INVESTIGACIONES

 

Sobre os modos de praticar Educação Física na Educação na Educação Infantil *

On the forms of practice of physical education in the kindergarten

Sobre los modos de practicar educación física en la educación infantil

 

Ana Cristina Richter a, Alexandre Fernandez Vaz b

 

a Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Paraná, Brasil; bolsista CAPES, Telefone 0055 48 33654842, ana_tinaa@uol.com.br.
b Centro de Ciências da Educação, Programas de Pós-graduação em Educação e Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Santa Catarina, Brasil, Telefone: 0055 48 37219243, alexfvaz@uol.com.br.
* Este artículo fue solicitado por la Revista Estudios Pedagógicos en diciembre del 2011 en el contexto del proyecto de Investigación FONDECYT (Fondo de Investigación Científica y Tecnológica) Nº 11110016, titulado "Educación Física y su función de transformación de las desigualdades sociales: profesorado del área y documentación ministerial". El artículo fue aceptado en junio de 2012. El trabajo es resultado parcial de los proyectos "Documentação, sistematização e interpretação de boas práticas pedagógicas nos processos de educação do corpo na escola" y Teoria Crítica, Racionalidades e Educação III", financiados por el CNPq.


RESUMEN

El artículo presenta resultados parciales de una investigación sobre "buenas prácticas pedagógicas" de la educación corporal en jardines de infantes en una ciudad del sur de Brasil. Tomando en cuenta datos de entrevistas, observaciones, registros de clases, así como distintos documentos, reflexionamos sobre la relación entre formación, educación corporal y prácticas pedagógicas en Educación Física. Los análisis revelan prácticas pedagógicas diferenciadas de las que comúnmente se materializan en dichas instituciones, en términos de tiempo, espacio, contenidos. Emergen cuestiones como el cuidado para con el otro y para con el espacio común, así como el fomento a la amistad y el reproche a todas las formas de violencia. Aparece también un pensamiento no esquemático y una disposición abierta que se opone al lugar común de la adecuación en los marcos de una razón instrumental, en forma de contexto. En las notas finales, se ofrecen pistas para la constitución de otros modos de practicar la Educación Física Infantil.

Palabras clave: formación de profesores, educación corporal, prácticas pedagógicas de educación física, educación infantil.


ABSTRACT

The aim of this paper is to present results of a research on "good pedagogical practices" in body education in a Brazilian Kindergarten. Taking in account interviews, observation, class reports and several documents, we reflect about the relationship between formation, body education and pedagogical practices in Physical Education. The analysis suggests very advanced pedagogical practices if they are compared with regular practices, especially in terms of time, space and contents. Taking care of the other and of the common space, as well as improving friendship and refusing of all kind of violence were some issues found. A non-schematic thinking and the strong opposition against common-sense and instrumental reasoning take part of this context. In the endnotes we offer some ideas about new models of practice in Physical Education for Children.

Key words: teacher training, body education, pedagogical practices in physical education, childhood education.


RESUMO

Apresentam-se resultados parciais de uma investigação sobre "boas práticas pedagógicas" de educação corporal na Educação Infantil de uma cidade do sul do Brasil. Considerando-se dados de entrevistas, observações, diários de classe e documentos distintos, repensam-se a relação entre a formação e educação corporal e as práticas pedadógicas na Educação Física. As análises revelam práticas pedagógicas diferenciadas daquilo que comumente se estabelece nos termos do tempo, do espaço e do conteúdo. Emergem questões como o cuidado para com o outro e para com o es-paço comum, ao lado do fomento à amizade e da rejeição a toda forma de violência. Pensamento não padronizado e disposição aberta em oposição ao lugar-comum da adequação nos moldes de uma racionalidade instrumental também compõem o mesmo quadro. Apresentam-se notas finais que oferecem pistas para a constituição de modos outros de praticar a Educação Física Infantil.

Palavras chave: formação de professores, educação corporal, práticas de ensino de educação física, educação infantil.


 

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem origem em uma pesquisa integrada realizada em ambientes educacionais brasileiros, argentinos e colombianos,1 que empreendeu esforços de compreensão, problematização e reflexão em torno da educação do corpo em ambientes institucionais, notadamente escolas, creches e atividades de educação não formal. Buscávamos registrar e analisar práticas pedagógicas de Educação Física que favorecessem, entre outros aspectos, novas possibilidades de ação pedagógica no âmbito da Educação Básica que fossem de alguma forma reconhecidas, pela comunidade escolar, como boas práticas educativas.

Neste texto dedicamo-nos aos resultados originários de uma das creches pesquisadas, em que trinta profissionais atendem noventa e nove crianças entre 0 e 5 anos de idade. Ela se localiza em um bairro da zona urbana de uma capital de estado do sul do Brasil e tem sido reconhecida por uma ação diferenciada, tanto no que se refere à busca por atender as novas diretrizes relacionadas à área da educação infantil, que têm rechaçado uma concepção de Educação Física como disciplina escolar, que desconsi-deraria, interesses e necessidades das crianças e determinaria o tempo de duração das aulas, fragmentando os conteúdos, como veremos adiante, quanto no que diz respeito à crítica ao papel secundário, compensatório ou meramente recreativo que tem demarcado as práticas pedagógicas nas instituições.

Ocupamo-nos de dados de entrevistas, observações de campo, registros das aulas realizados pela professora de Educação Física, bem como dos documentos que orientam o trabalho pedagógico da Rede e o Projeto Político-Pedagógico da instituição em questão. Nosso intuito é refletir sobre as relações entre formação, educação do corpo e práticas pedagógicas de Educação Física, área responsável por grande parte das técnicas corporais e dos cuidados com o corpo em ambientes educacionais e que se faz presente nas creches e pré-escolas da rede pública municipal desde 1982, atendendo crianças desde o berçário.

Ao contrário do que comumente se considera como alicerce para as práticas educativas, a creche dispõe de um espaço físico limitado e recebe a mesma quantidade restrita de recursos materiais que as demais instituições que integram a rede pública municipal de ensino. O acesso à creche é realizado por um corredor que leva a um espaço coletivo coberto, o salão. Nesse ambiente as crianças realizam as refeições, atividades de Educação Física, entre outras práticas coletivas. Ele dá acesso às demais dependências, entre elas uma sala para a direção e outra de vídeo. Há ainda uma despensa, uma pequena cozinha e uma sala de professores; um banheiro para os profissionais; cinco salas interligadas por banheiros; um depósito. Duas enormes estantes do depósito guardam os materiais de Educação Física, devidamente identificados. Nas etiquetas lê-se: colchões, quadrados de espuma para piscina, pano para escorregar, bastões e boliches grandes, bambolês, cordas grandes, cordas pequenas, petecas, pernas de pau, túnel. Também encontramos escadas, pés de lata, barracas, jogos de mesa, cavalinhos de madeira, fantasias, bonecas, carrinhos, massa de modelar, entre outros materiais coletados em campanhas pela própria professora de Educação Física, tais como bicicletas, patinetes, skates. O ambiente externo conta com um parque que dispõe de casinha, escorregadores, gangorras, brinquedos pedagógicos de madeira. Dois solários, uma pequena quadra e corredores de passagem, também compreendem a área exterior.

Nas próximas páginas apresentamos e discutimos dados relacionados às diferentes instâncias de formação nas quais a professora de Educação Física se integra, destacando a relação que se estabelece com o conhecimento e considerando as problemáticas que emergem no cotidiano institucional. No capítulo seguinte, discutimos o lugar ocupado pela Educação Física no projeto da creche, mostrando como a área se integra, dialoga e é entendida no interior daquele ambiente educacional. Esse entendimento exige o envol-vimento de todos(as) os(as) profissionais que lá atuam e permite que os momentos de Educação Física se alarguem, se ampliem, tanto em termos temporais, quanto espaciais, mas também na compreensão de um corpo que se coloca para além da dimensão motriz. Nesse contexto emergem questões como o cuidado para com o outro e para com o espaço comum, ao lado do fomento à amizade e da rejeição a toda forma de violência. Por fim, apresentamos algumas notas no sentido de oferecer pistas que talvez possam ajudar na constituição de modos outros de praticar a Educação Física infantil – considerando que pensar é também uma prática.

2. DAS BALIZAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA DA EDUCAÇÃO INFANTIL NA FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA

A professora de Educação Física da creche pesquisada, embora tenha aprendido em sua formação universitária conteúdos circunscritos à iniciação desportiva, aos jogos pré-desportivos, à recreação e à prevenção e reabilitação física, tem buscado outros aportes, pois, em suas palavras, "pensar nosso fazer pedagógico é uma constante provocação para nossas ações." Essa busca obteve suporte nos encontros de formação continuada oferecidos pela Municipalidade de Florianópolis, que se colocaram para a professora como "um momento de virada para a gente", fazendo encontrar a Educação Física com a Educação Infantil.2 Nas palavras da professora:

A formação continuada tem dado suporte para minha prática, apesar de achar que foram poucos encontros em alguns anos, mas, sem dúvida, ela foi muito importante para pensar nosso fazer pedagógico, e uma constante provocação para nossas ações. A troca de experiên-cias intercalada com a teoria nos fez também repensar, replanejar nosso trabalho, perceber que havia outras possibilidades de trabalhar com a Educação Física na Educação Infantil. A apropriação das leituras sobre a Educação Infantil (a Pedagogia da Infância) nos aproximou dos saberes dessa área, também [...] nos indicou novos caminhos para atuar e entender um pouco mais sobre as crianças de 0 a 5 anos.

No ano de 2004, dada a interrupção nos processos de formação continuada oferecidos pela Rede, que vinham ocorrendo desde 1992, um grupo de professores, entre os quais a da creche pesquisada, articulou-se em torno da criação de um grupo de estudos3 que, para a professora se coloca como

meio para continuar pensando e discutindo nossa prática e para apropriação de leituras que abordem o tema da Educação Física na Educação Infantil. O início do grupo de estudos se deu pela ausência da formação continuada, por perceber que não poderíamos parar de pensar sobre nosso trabalho. Hoje esse grupo para mim é um momento muito especial em que posso trocar experiências e me apropriar das leituras dando assim subsídios para meu dia-a-dia. É de fundamental importância que ele exista. Além da discussão dos textos da troca de experiências, os participantes se sentem acolhidos com seus anseios, suas dívidas, seus avanços, e suas alegrias, compartilhando as experiências com seus pares.

Apesar de a Municipalidade voltar a oferecer formação continuada, o Grupo Independente da Educação Física na Educação Infantil (GEIEFEI) mantém encontros quinzenais em que se realizam discussões de textos tanto da área da Educação Física quanto da Pedagogia, quando também são apresentados relatos de experiências, registros fílmicos e fotográficos das aulas que vêm a ser analisados e problematizados.

Interessa-nos ressaltar, nesse contexto de formação, a presença de um diálogo que ultrapassa o campo disciplinar da Educação Física e passa pelo campo da Pedagogia, entre outras áreas das Ciências Humanas e Sociais, e que coloca em xeque os discursos que historicamente buscaram legitimar a Educação Física Infantil, como a Psicomotricidade, a Recreação e o Desenvolvimento Motor, ancorados em saberes da Medicina e da Psicologia do Desenvolvimento e demarcados, frequentemente, por uma concepção etapista de in-fância como se "todas as crianças fossem iguais e uniformes em suas respectivas idades – supondo, portanto, que aquelas que não se encaixam no modelo seriam 'anormais'." (Taborda de Oliveira, Oliveira e Vaz, 2008:309). Um outro lugar social da Educação Física, ao qual essa formação procura se opor é o da intervenção sobre a saúde biológica e social da população, em especial por meio do controle do tempo livre como recurso disciplinar capaz de instituir hábitos de higiene, canalizar energias, desenvolver o gosto pela atividade física e pelo comportamento "saudável".

A aproximação com o campo da Pedagogia, mais especificamente, da Pedagogia da Infância, tem fomentado a elaboração de novas diretrizes pedagógicas para a área, que têm ponderado a Educação Física como disciplina escolar, que desconsideraria interesses e necessidades das crianças ao escolarizá-las precocemente por meio, entre outros aspectos, do tempos rigidamente controlados e da fragmentação dos conteúdos. Considera-se a necessidade de construir uma Educação Física mais próxima das crianças e que tenha como eixo principal do trabalho pedagógico o brincar, o interagir e o manifestar-se por meio de diferentes linguagens (Sayão, 2004). Isso implica numa proposta de trabalho que supõe ser capaz de romper com modelos pautados nas disciplinas escolares. A edu-cação dos pequenos não deveria ser escolarizada e, portanto, disciplinar. Esse aspecto é também considerado no trabalho pedagógico da professora de Educação Física da creche pesquisada, como veremos adiante.

3. OUTRAS INSTÂNCIAS DE FORMAÇÃO

Compondo a sua formação, a professora de Educação Física4 participa de grupos de estudos que ocorrem semanalmente no interior da instituição e que se conjugam com encontros mensais denominados Paradas Pedagógicas, ocasiões em que as crianças são dispensadas da creche e todos os profissionais (docentes, supervisora, merendeira, serventes, diretora) se reúnem durante oito horas para debater os projetos institucionais. Em todas as reuniões pedagógicas, esclarece a professora de Educação Física, "eu também tenho meu espaço. Então isso está garantido. [...] Trocar idéias, conversar, discutir o trabalho."

A professora também entende que parte de sua formação envolve a realização de estágios na instituição em que trabalha, bem como a integração em projetos de pesquisa, tal como o que resulta no presente trabalho. Na entrevista concedida ela pontua:

Estou super contente de a P. [estagiária] ter vivenciado comigo. Eu nunca tinha tido estagiário comigo. [...] Era uma coisa que eu tinha vontade. Que a gente pudesse trocar. [...] Mais feliz ainda fiquei com a pesquisa. De você poder sistematizar, registrar, comentar um pouquinho; que eu pudesse lapidar mais. [...] Eu não estou dizendo que minha prática seja uma coisa certa. Eu não sei de nada. Eu estou fazendo, mas eu acredito nisso. [...] Se vem uma pessoa, eu vou lapidar, vou encaminhar, eu vou ampliar conhecimentos. E isso é um olhar, um olhar de fora com formação; eu tenho certeza que vai me ajudar a ampliar. E eu queria por isso à prova. Abrir mesmo. Puxa! Quem sabe eu posso estar ampliando. [...] Profissionalmente eu tinha muita vontade. [...] Eu estou apostando no relatório para ver o que ele pontua, como posso evoluir.

Todas essas instâncias de formação indicadas pela professora subsidiam a construção de modos característicos de pensar e fazer a Educação (Física) da instituição, em mo-vimento que permite aproximar e colocar em tensão as produções acadêmicas que vêm sendo desenvolvidas com a organização das práticas e saberes que integram o trabalho pedagógico. Não se trata de uma formação de oferece técnicas ou programas "adequados", mas, antes, de uma formação alcançada

mediante esforço espontâneo e interesse, [que] não pode ser garantida simplesmente por meio da freqüência em cursos. [...]. Na verdade, ela nem ao menos corresponde ao esforço, mas sim a disposição aberta, a capacidade de se abrir a elementos do espírito, apropriando-os de modo produtivo na consciência, em vez de se ocupar com os mesmos unicamente para aprender, conforme prescreve um clichê insuportável. (Adorno, 2000: 64).

Trata-se de estabelecer uma mediação reflexiva a respeito das concepções, metodo-logias, técnicas, práticas que vêm atravessando a história da Educação e da Educação Física e que não se limita à apropriação de modelos pré-existentes. Tal movimento se coloca em oposição ao lugar-comum da adequação entre meios e fins, enquanto exercí-cio, técnica e aplicação que acaba por conformar, entre outros aspectos, a identificação entre teoria e prática nos moldes de uma racionalidade instrumental, da qual nos falam Horkheimer e Adorno (1985) que, ao entronizar os meios, se esquece de pensar os fins.

Outras instâncias de educação do corpo, como é o caso dos momentos de alimen-tação, são consideradas na elaboração de um projeto conjunto, superando a ideia de que as práticas comensais se fundamentam apenas na ingestão de alimentos que sustentam o organismo, com fins de evitar a obesidade ou carências alimentares, mas, sim, promoven-do outras formas de contato entre as crianças, entre adultos e crianças e entre elas e as práticas alimentares. Assim, o refeitório é organizado em forma de bufê e os alimentos são dispostos em mesas decoradas com toalhas e arranjos de flores confeccionados pelas crianças, e onde elas se servem à vontade. Os pequenos escolhem os colegas com os quais desejam sentar-se, sem que haja necessidade de responder ao critério de agrupamento por turma ou faixa-etária. Por vezes acomodam-se nas pequenas mesas, também decoradas, juntamente com irmãos, primos, vizinhos, colegas de outros grupos, num gesto gratui-dade, de aproximação, de impulso em direção ao outro,5 ou noutros termos, de fomento à amizade individual, em contraposição a criação de coletivos cegos.

4. DA INSTITUIÇÃO E SEU PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO: O LUGAR DA EDUCAÇÃO FÍSICA

O trabalho na creche é organizado por meio de Projetos Coletivos planejados com vistas a atender todas as crianças, e de Projetos de Trabalho desenvolvidos pelas profes-soras com os grupos com os quais atuam. Os primeiros são organizados por comissões de profissionais que planejam as atividades e procuram garantir sua execução junto com os(as) demais professores(as), e envolvem, entre outros, temas como a recepção das crianças e seus responsáveis junto ao horário de saída e de entrada, a organização dos momentos de alimentação, da hora do sono etc.

Os projetos coordenados pela professora de Educação Física envolvem, entre outros, a organização de momento quinzenal para a realização da brincadeira do Boi-de-mamão, prática de origem africana composta por uma encenação que envolve dança e cantoria em torno da morte e ressurreição de um boi.6 A apresentação é organizada com uma turma de crianças atendidas na creche, bem como de familiares que desejem dela tomar parte. A cada apresentação a turma que atua é alterada, favorecendo a participação de todas as crianças. Saídas e Passeios, outro projeto, é também coordenado pela professora de Educação Física e ocorre mensalmente. De acordo com seu relato, ele "tem proporcionado às crianças vivências diferenciadas em momentos e locais fora da instituição, experimentando outras linguagens, brincadeiras e novas aprendizagens."

Para a realização das atividades, o salão de entrada, a quadra, o parque, as áreas laterais da creche e as salas são utilizados:

Nas estações mais quentes substituo os passeios com brincadeiras de água na quadra ou no parque, usando mangueira, chafariz, muitas bacias com água e muito material de sucata para as brincadeiras [...]. Intercalo também com um dia de bicicletaço. Esse dia é planejado com antecedência, mandando bilhetes para os pais providenciarem qualquer instrumento que sirva de transporte, como: bicicleta, skates roller, patins, motocas e outros.

A professora de Educação Física também se responsabiliza pela coordenação do projeto Organização de espaços coletivos, quando, segundo afirma:

procuramos proporcionar diferentes atividades que permitam às crianças de diferentes idades, irmãos, primos vizinhos, interagirem [...]; Acreditamos que é nesse movimento interativo que há significações de gestos e palavras, que se constituem num processo de conhecimentos individuais e coletivos. É nesse ambiente de trocas que as linguagens devem estar presentes. Essas atividades coletivas são realizadas na última sexta-feira do mês e em todas as segundas feiras.

Ainda segundo seu relato:

Nesse dia, [segundas-feiras] penso que elementos eu poderia colocar no parque. [...] Eu acho que meu papel é também ampliar as brincadeiras por meio dos elementos diferenciados que são colocados no parque. [...] Ano que vem quero trabalhar com capoeira. Mas eu preciso aprender porque é uma coisa que eu não domino nada. Você vai estruturando, engrossando os projetos. [...] Isso só tem porque tem um profissional que pensa isso. [...] Como vivenciar? Ver o que não funciona, o que tem que modificar. [...] As pessoas da limpeza também se disponibilizam a deixar o trabalho. Elas têm essa consciência e vão percebendo que isso é bom para as crianças. [...] A gente vê o que não deu certo, a gente avalia. Isso não é difícil de se fazer quando se planeja. [...] Isso é respeitar as crianças. [...] Quando nós temos uma limitação de espaço a gente tem que se organizar dentro dele. Se juntar muitas crianças no parque, não dá para fazer nada, elas vão se machucar porque o lugar é pequeno. Então organizo a divisão em dois momentos: o primeiro atende dois grupos e o segundo, três grupos de faixa etária diferenciada.

Não somente a professora de Educação Física é responsável pela organização de projetos coletivos. A preparação das supracitadas práticas comensais é de responsabilidade da supervisora enquanto um grupo de professoras auxiliares coordena os momentos de chegada e saída da creche, reunindo as crianças de faixas-etárias diversas em diferentes espaços da instituição e propondo atividades diversas, como narração de histórias, jogos, música, entre outras.

No tocante aos projetos coordenados pela professora de Educação Física, cabe ainda destacar a participação efetiva de todos os profissionais que atuam na instituição, desde as serventes, como vimos no recorte da entrevista acima, além de merendeiras, auxiliares, professoras, supervisora e diretora.

A esse respeito uma segunda professora entrevistada, pedagoga que atua com crianças entre 2 e 3 anos de idade, explica que

No início a Educação Física trabalhava não no ritmo como se trabalha agora. Era um absurdo. A professora chegava, pegava aquelas crianças todas, depois trazia de volta, quarenta e cinco minutos, era uma coisa meio sem sentido. Depois é que foi mudando isso. [...]. A gente foi vendo a Educação Física de outro jeito, foi acompanhando mais o trabalho da Educação Física [...] Hoje sempre quando a professora de Educação Física sai com as crianças, as auxiliares e professoras (de sala) vão junto. Não tem mais essa coisa. Não é um trabalho individual, está atrelado ao que a unidade precisa. E é um trabalho coletivo.

O que se coloca em jogo é um diálogo não hierárquico entre os sujeitos que com-põem o universo institucional e que se traduz em um Projeto Político-Pedagógico não idealizado e, portanto, como expressão da reflexão e da problematização de uma prática concreta sempre aberta à elaboração de novas sínteses e sustentada por uma preocupação comum que pergunta, mais do que afirma, o que é e como deve ser a Educação Física.

5. EM TORNO DAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

5.1. O ESPAÇO E O TEMPO

As atuais discussões relacionadas ao tempo e ao espaço na Educação Infantil apa-recem relacionadas às funções das instituições e à crítica aos modelos tradicionais de intervenção pedagógica influenciados, sobretudo, pela psicologia. Contestando as intenções disciplinadoras da escola e seu papel na transmissão de conhecimentos para as crianças de zero a cinco anos, afirma-se que as instituições destinadas à pequena infância supõem fins complementares à educação da família e que, "enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas, através da aula, a creche e a pré-escola têm como objetivo as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito à criança" (Rocha, 2001: 31). Isso implica num trabalho que privilegie, para além do aspecto cognitivo, o afeto, a socialização, a brincadeira, o movimento, num ambiente que estaria livre da uniformidade curricular, do agrupamento rígido e invariável das crianças e da configuração disciplinar que regu-lamenta as atividades a partir de uma divisão compartimentada do espaço e do tempo.

Em resposta a essas questões e na busca por uma Educação Física articulada com as discussões colocadas pela Pedagogia, a creche apresenta os supracitados projetos coletivos no sentido de favorecer: a interação entre crianças de diferentes faixas etárias; a superação de uma demarcação rígida de horários para as aulas de Educação Física; a participação da professora da área em diferentes momentos da rotina, tais como os períodos de higiene, de sono e de alimentação; a reconfiguração dos espaços internos; a ampliação dos espaços de circulação no interior da instituição, mas também para além das suas fronteiras, seja nas cercanias da instituição, em parques e praças públicas, na praia, no centro da cidade, ou mesmo numa visita à outra creche.

Estas questões podem ser observadas em cenas extraídas de nosso diário de campo:

CENA 1: São 08h18min. A professora de Educação Física I. e a auxiliar de ensino organizam materiais no espaço do refeitório. [...]. Duas mesas ainda estão postas e duas professoras lancham com nove crianças. A servente varre o espaço vago. Outras duas professoras auxi-liam a recolher mesas e cadeiras e trazer colchões vindos do depósito. A supervisora também auxilia. A sala de vídeo vai se transformando e recebendo colchonetes. Segundo I., trata-se de 'um lugar para pular'. Além de um espaço organizado com fantasias, há uma piscina com cubinhos de espuma. Em frente à piscina foi disposto um banco e uma mesa para que os pequenos subam e saltem. São 09h10min e um grupo de crianças se aproxima. As salas estão sendo organizadas. Uma delas abrigará um espaço para confecção de bijuterias. A sala ao lado, uma oficina de trabalhos em argila e uma terceira, a oficina de bandeirinhas de papel, confeccionadas com recortes de folhas de revista. Os grupos I e II (crianças entre 0 e 3 anos de idade) não organizam as salas, mas as professoras circulam com os pequenos pelos diferentes ambientes. [...]. Os bebês que caminham são levados aos espaços coletivos. Algumas crianças sobem no banco, na mesa e saltam na piscina. Quatro meninas estão fantasiadas. Nesse momento 'A linda rosa juvenil' – cantiga de roda – toca ao fundo. Na sala de bijuterias, oito crianças trabalham meticulosamente na confecção das bijuterias. Uma menina mostra o anel que acaba de confeccionar e sai em direção a outro espaço. As crianças conversam, a professora orienta individualmente. [...] No refeitório encontram-se aproximadamente trinta e oito crianças, saltando, escalando bancos e mesas, vestindo fantasias, brincando de carrinhos e de bonecas. Uma menina auxilia um bebê que tenta escalar uma mesa. [...] Um garoto pega a irmã menor pela mão e circula pelo ambiente. I. enche balões e distribui às crianças que estão na 'sala de saltos'. [...] Doze meninos pulam na 'sala de saltos', repleta de colchões[...] As professoras conversam, orientam, organizam o momento. [...] As professoras começam a guardar os materiais do refeitório e a encaminhar as crianças para suas salas. I. pede que alguns pequenos ajudem a recolher os cubos de espuma. [...] As crianças são levadas para o almoço. [...] Os maiores servem-se no bufê. Há garfos e colheres à disposição para que os pequenos selecionem. No cardápio: risoto, batata cozida, salada de tomate e repolho. Mamão para sobremesa. São 11h10min e I. circula pelas mesas do refeitório e conversa com as crianças que sentam aleatoriamente as mesas, encontrando companheiros de diferentes faixas etárias ao almoçar. (Diário de Campo, 01 de junho).

CENA 2: Três crianças dormem ao som de música suave. A professora está sentada sobre o tapete com onze crianças. Sai para buscar o lanche que será realizado mais cedo, em sala, em função do passeio. São 13h30min desta tarde ensolarada e de temperatura amena. I. explica que irão balançar caminhar, correr. [...] E pergunta: "quem nunca foi à universidade?" Um menino responde: "sempre ando de bicicleta lá.". A professora entra com bananas e maçãs. Avisa que as crianças que desejam bananas podem servir-se e colocar as cascas em um prato. [...] Uma criança avisa que a outra deve acordar e a professora diz: "calma, deixa ela se espreguiçar, levantar devagarzinho." A auxiliar guarda colchonetes. A professora convida uma menina para levantar, lavar o rosto, fazer xixi. São 13h45min, quase todos já lancharam. [...] A professora convida para lavarem o rosto, as mãos e retornarem a roda para "passar creminho nas mãos." Um menino ainda lancha. "Mais alguém vai querer uma banana, uma maçã?" – pergunta a professora. Dois meninos repetem o lanche e a auxiliar leva a bandeja com os restos para a cozinha. As crianças abrem as mãos e a professora coloca creme. I. orienta formas de auto-massagem. Depois diz: "me deixa sentir o cheiro." Uma menina exclama: "Ai que delicia." . A professora orienta: "Lá a gente pode correr, pular, rolar na grama... mas no caminho tem que ir bem juntinho." [...] São 14h22min. Chegamos à universidade e sentamos à sombra de uma pequena árvore. As crianças devem descobrir o que há nas mochilas que cada uma das professora carrega: redes, escada de cordas, balanço, água, canecas, papel higiênico, cordas. I. convida as crianças a encontrarem locais para pendurar as redes. Três crianças sobem nas arvores. A professora pede sugestão: "dá uma sugestão – onde a gente pode pendurar a escada?" [...]. Crianças balançam na rede; duas sobem nas árvores de baixa altura; um menino e uma menina circulam conduzindo uma corda. São 14h45min. Quatro crianças puxam uma corda e a professora a segura ao centro, intermediando uma espécie de cabo-de-guerra. A corda vira boi: "vem boi" - dizem as crianças. [...] I. pergunta: "será que tu consegue subir naquela escada? Vamos tentar?" E sai com a criança. Mas três os acompanham... Três crianças rolam na grama; uma menina puxa uma corda; outra balança nas cordas. Um menino corre e diz para a professora que rolou. São 15h05min. A professora sacode uma corda com um menino e a auxiliar acompanha outras cinco crianças ao banheiro. Quatro crianças bebem água; dois rolam. Uma menina sobe na arvore, duas balançam na rede com auxilio de I.. Uma menina rola pelo gramado em desnível. A professora ensina uma menina a subir na arvore indicando onde colocar as mãos. Ela sobe. Dois meninos correm de uma rede a outra. Duas crianças brincam de pegar. Duas outras fingem que dormem. São 15h15min [...] I. sugere saída em busca do lobo. Saímos em direção ao bosque da universidade. Após a caminhada paramos em frente a uma casa de madeira. A professora bate palmas e as crianças chamam em alto tom: "porquinho... porquinho..." e silenciam. [...] Dirigem-se a outra pequena construção, um palco. Há pinturas e as crianças logo identificam as imagens que retratam os personagens da dança do Boi-de-Mamão: "olha o boi"; "olha a Bernunça". A professora auxilia as crianças a subirem no palco. Batemos na janela. Duas crianças se assustam. Outras tentam ouvir os ruídos e aproximam os ouvidos da porta. A professora diz: "vamos correr e acordar a G. (auxiliar) que ficou dormindo." As crianças correm. I. reorganiza a fila para o retorno. São 15h35min. [...] Chegamos à creche e as crianças são encaminhadas para lavar as mãos. Em seguida seguem ao refeitório para jantar. (Diário de Campo, 01 de agosto).

5.2. UM ESPAÇO COMUM

A efetivação das propostas desenvolvidas na creche, conta, como dito, com a partici-pação de todos os profissionais, auxiliando na organização do ambiente, nas orientações diante de brincadeiras mais ousadas, no envolvimento com passeios ou em sua inserções em atividades propostas pelas crianças. Essa forma de atuação conjunta que integra a cultura institucional conta também com o apoio das crianças:

CENA 1: Algumas crianças auxiliam a professora de Educação Física I. a colocar os cubos da piscina em um saco e levar ao pátio externo. Agora I. e as crianças levam à piscina à rua. Então organizam colchões. Uma menina sugere que I. 'coloque bolinha de sabão no parque'. I. explica que hoje não está preparada para a atividade e fará noutro momento. Três crianças sugerem que uma escada de três degraus seja levada para junto da piscina de espuma. I. concorda e os três levam a escada. (Diário de Campo, 1 de junho)

CENA 2: . I. convida a ajudarem a levar as motocas de volta ao depósito. Duas crianças ainda pedalam; quatro conversam com I. [..] Ela diz: "cada um vem pedalando. Vamos guardar as motocas." As crianças vão. Recolhemos os materiais restantes com auxilio dos pequenos. (Diário de Campo, 22 de agosto)

CENA 3: As professoras chamam as crianças e retornam às salas. I. acompanha um bebê e pede para duas meninas que o escoltem no restante do trajeto à sala. Três meninos ainda brincam com carrinhos, dois calçam os tênis. Uma professora auxilia uma menina a colocar os sapatos. Uma menina avisa a professora que ficará ajudando a I.: "eu vou ajudar a I." e guarda os cubos de espuma em um saco. (Diário de Campo, 9 de julho)

CENA 4: I. convida as crianças a encontrarem locais para pendurar as redes. Três crianças sobem nas arvores. A professora pede sugestão: "dá uma sugestão – onde a gente pode pendurar a escada?" (Diário de Campo, 1 de agosto).

CENA 5: Um menino auxilia um bebê a descer uma escada no parque. Há duas professoras no ambiente do parque e quarenta e duas crianças. I. circula. [...] Uma professora cantarola: 'Quem quer musica? Brincar de musica?' Várias crianças saem correndo e os menores são acompanhados. Uma menina ajuda a conduzir os bebês, levando um pequeno em seu colo. [...] Um bebê cai e uma menina o auxilia a levantar (Diário de Campo, 1 de junho).

Orientadas frente à organização e aos cuidados para com o outro e para o ambiente no sentido de zelar e de preservar um espaço comum, ou seja, frente a objetivos extra-pessoais, as crianças operam com um conjunto de práticas daquele espaço social e que são fomentados nas relações intra e intergeracionais. Nestes pequenos gestos veiculam valores no sentido de olhar e de se conduzir no mundo. Trata-se de um processo que se realiza, segundo Gonzalez e Fensterseifer (2009: 13), "no infinito compartilhar de sentidos gerados pelos seres humanos. Esses sentidos são produzidos intersubjetivamente e veiculados no espaço educacional 'com', 'sobre' e 'para' as novas gerações."

5.3. MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA

Focalizando a interação entre crianças de diferentes faixas etárias, a brincadeira, a dança, a expressão, a movimentação em espaços não usuais e com recursos diferenciados, a professora explica o seu papel, afirmando que a presença do adulto "não deve cons-tranger as crianças, exigindo a repetição de gestos tidos como convencionais, corretos, precisos." Nesse sentido, observa-se um distanciamento em relação às práticas competitivas e, novamente, aos discursos do Desenvolvimento Motor e da Psicomotricidade – que, embora muito debatidas e criticadas, ainda são tomadas como referência em diversas instituições –, que atribuem à Educação Física o papel de aperfeiçoar o desenvolvimento das habilidades motoras básicas das crianças, com repercussões sobre os domínios cognitivos e sócio-afetivos (Bracht, 1999) e que, segundo Sayão (1999), se caracterizam pela instrumentalização do movimento com o propósito de ajustamento e adaptação, além de tomar o corpo e o movimento como "desculturalizados".

Várias cenas de nosso diário de campo apontam para a participação das crianças na criação de diferentes possibilidades de movimentação e de uso dos artefatos culturais, como se pôde observar no momento em que "três meninas saltam na piscina plástica repleta de cubos de espuma. Uma criança se aproxima e diz: 'Ai! Tem jacaré!' I. pergunta: 'Onde?' 'Ali', apontam as crianças. Uma menina assume o papel de jacaré e começa a perseguir outras". (Diário de Campo, 1 de junho)

A professora destaca que esses momentos não são isentos de conflitos e que mediá-los "exige esforço". Esse empenho implica na busca por estabelecer um diálogo não autoritário com os pequenos e por encontrar alternativas frente a expressões de violência, como as agressões e os momentos o medo, como se pode observar nas cenas abaixo:

CENA 1: I. chama um menino para conversar a respeito de uma disputa por um chapéu. [...] Explica que eles podem revezar o uso. Comenta que tentará providenciar mais chapéus, pois eles gostam muito. (Diário de Campo, 04 de junho)

CENA 2: Duas crianças brigaram e I. não sabia se era brincadeira ou briga. Quando se interou do conflito separou os dois meninos e levou-os para um canto para conversarem. (Diário de Campo, 01 de outubro)

CENA 3: I. senta com um garoto ao colo. Ela observa. Ela conversa com outra criança, per-guntando o que ele está fazendo. Uma menina chora. Ela foi arrancada de uma motoca pelo mesmo garoto que havia lhe batido anteriormente. I. se aproxima e diz: "vamos negociar." (Diário de Campo, 22 de agosto)

CENA 4: Um menino veste uma mascara e o bebê chora de medo. I. e as professoras pedem que o menino empreste a máscara. Explicam que é feita de borracha, que foi pintada e pedem que ela toque, sentindo a textura. A menina experimenta. (Diário de Campo, 9 de julho)

CENA 5: I. pergunta a um menino o motivo pelo qual chora: se está com medo. Ele sinaliza de modo afirmativo. Ela pergunta: "de que tem medo?" Ele responde: "de dodói." I. explica por quais espaços ele pode se movimentar sem que seja atingido pelas crianças que saltam da escada. (Diário de Campo, 31 de agosto)

O medo, o choro, as relações sócio-culturais violentas, a dominação pela força, abordadas de modo não autoritário, se colocam como importantes eixos para pensarmos a formação do corpo no quadro reflexivo da defesa de uma educação resistente à barbá-rie (Vaz, 2004), evitando aquilo que, em termos históricos, culminou em Auschwitz: "a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação" (Adorno, 2000: 118). Adorno refere-se à existência da barbárie em toda parte, quando há regres-são à violência primitiva que se manifesta até mesmo na linguagem, nos gestos rudes, nas ameaças. Ela também se manifesta, segundo o autor, na dupla hierarquia presente na escola: a hierarquia oficial, conforme o desempenho intelectual e a hierarquia não oficial, que corresponde à força física e demais aptidões não valorizadas pela primeira e que desempenham um papel importante na produção de subjetividades ou de um certo etos vinculado à valorização da força, e mediado por uma educação para a dureza, para a severidade. Essas questões, presentes na creche, e que permanecem tabus, exigem, conforme o autor,

esclarecimento dos próprios professores, dos pais e, tanto quanto possível, também dos alunos, com quem os professores deveriam conversar sobre as questões. [...] Não evito a hipótese de que em geral é possível conversar com muito mais seriedade e maturidade com as crianças do que os adultos querem reconhecer para assegurar-se, por esta via, de sua própria matu-ridade. Mas não se deve superestimar a possibilidade de um tal esclarecimento. [...] Não se deve esperar muito do esclarecimento meramente intelectual, embora se deva iniciar por seu intermédio; um esclarecimento um pouco insuficiente e apenas parcialmente eficiente ainda é melhor do que nenhum (Adorno, 2000: 113).

Entendemos que aqueles pequenos gestos, falas e ações da professora de Educação Física, como os descritos nas cenas acima, favorecem uma educação contra a capacidade de suportar a dor: uma pedagogia "anti-analgésica", poderíamos dizer. Isso implica considerar – para muito além do conforto térmico, da limpeza do ambiente, da variedade de materiais e da sua segurança garantida por um olhar asséptico, e contrariamente a uma pedagogia do mero gozo, no sentido de satisfação imediata dos desejos e das necessidades vitais e, portanto, também de esquecimento da dor e do sofrimento –, a constituição de um espaço de acolhimento, valorizando uma atitude de mediação reflexiva (como ne-gatividade), mas também, com igual força, uma aproximação sensível (einen sinnlichen Zugang) e aconchegante (eine Anschmiegung) com os objetos, com o outro, e com o mundo (Bassani, 2008; Vaz, 2003; Gagnebin, 1997).

No aforismo "Sobre a gênese da burrice", Horkheimer e Adorno (1985) descrevem a burrice como uma cicatriz:

Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. Se as repetições já se reduziram na criança, ou se a inibição foi excessivamente brutal, a atenção pode se voltar numa outra direção, a criança ficou mais rica de experiências, como se diz, mas frequentemente, no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres, duros e capazes, podem tornar as pessoas burras – no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violência sofrida transforma a boa vontade em má. E não apenas a pergunta proibida, mas também a conde-nação da imitação, do choro, da brincadeira arriscada, pode provocar essas cicatrizes. (p.120)

A violência dos gestos, das palavras, os castigos, as ameaças, constituem uma forma de aprendizagem caracterizada por uma relação patogênica com o corpo que acaba por se traduzir no enrijecimento, na inaptidão à experiência e na supressão dos "vestígios de natureza que podem dar lugar à reflexão sobre nosso pertencimento a ela." (Bassani e Vaz, 2011: 160). Nessa direção, uma relação não violenta com corpo oferece espaço para a dimensão mimética, no sentido de uma aproximação sensível junto aos objetos sem, no en-tanto, dominá-los ou anulá-los, ou, noutros termos, favorecendo uma relação não autoritária.

6. NOTAS FINAIS

Boas práticas pedagógicas não admitem receitas universalmente válidas a serem aplicadas sobre as crianças. Tampouco podem permanecer isentas de uma permanente reflexão e problematização dos temas que a área comporta, das práticas e teorias que circulam na/pela Educação Física, em específico, e na Educação, em geral. Trata-se de um gesto de envolvimento, que implica demora, aproximação, contato, aconchego, mas também distanciamento, estranhamento daquilo que à primeira vista parece tão familiar, como por exemplo, a instituição, sua arquitetura, as legitimidades das áreas disciplinares como a Educação Física, seu lugar e tempo, conteúdos e práticas que historicamente a comportam e que levam, frequentemente, à estruturação de uma dinâmica de ensino semelhante àquelas já vivenciadas em muitos momentos da vida escolar (Vaz, 2002), ou, noutros termos, vinculada ao conjunto de saberes organizados, rotinizados, didatizados, que constituem a chamada cultura escolar. Tal movimento se coloca, como dito anteriormente, em oposição ao entendimento da prática (pedagógica) como mera aplicação de meios sem interrogar-se sobre os fins, promovendo, entre outros aspectos, a identificação absoluta entre teoria e prática que atrofia o pensar e que, apressada e impacientemente, como lembram Adorno e Horkheimer (1985), quer transformar o mundo sem interpretá-lo.

Para Adorno, pensar é também uma prática, no sentido do questionamento, da negação do já dado, do que está aceito e naturalizado, e que começa pela própria autocrítica. O pensar, no sentido adorniano, ou seja, como não-identificação com o meramente existente, se caracteriza como uma experiência em relação à realidade, conteúdo do pensar.

A formação e as práticas pedagógicas das professoras da creche pesquisada aparecem sustentadas por um trabalho compartilhado, em movimento permanente de mediação reflexiva a respeito de conteúdos e metodologias de ensino, do planejamento, dos registros das atividades e do replanejamento, mas também na consideração sobre lugares e tempos outros da educação do corpo no interior da instituição. Trata-se de relevar, de um lado, os grandes temas da cultura do corpo historicamente produzidos e culturalmente desenvolvidos e, de outro, estender e ampliar esse entendimento no sentido de considerar uma dimensão, por assim dizer, de alargamento na compreensão do corpo, seus lugares e expressões.

Nas palavras e expressões como "lapidar", "pensar nosso fazer pedagógico", "provo-cação para nossas ações", "repensar", "um olhar de fora", pronunciadas pela professora e acolhidas pelas profissionais da instituição, na sua preocupação com o impedimento da reprodução de práticas de violência e na busca por um pensamento não padronizado, enfim, no seu inconformismo, talvez possamos encontrar algumas pistas para pensar de outras maneiras ou, de outro modo, para praticar a Educação Física na Educação Infantil.

NOTAS

1 A investigação foi organizada de forma integrada a partir de parcerias estabelecidas entre pesquisadores das Instituições de Ensino Superior: Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Nacional de La Plata, Universidade de Antioquia. Os pesquisadores realizaram a investigação à luz de recortes temáticos comuns, cujo enfoque abrangia tópicas relacionadas ao currículo e a memória e identidade docente. Em cada uma das localidades foram selecionadas instituições de forma intencional, tendo como critério o reconhecimento, por parte da comunidade escolar, de ali se realizavam práticas de sucesso. Dedicou-se especial atenção ao conteúdo das propostas curriculares elaboradas e implantadas nas últimas duas décadas que, de alguma forma, expressam (também em sua negatividade) os debates da Educação e da Educação Física nos países em questão.

2 O "momento de virada", mencionado pela professora, refere-se às discussões da área da Pedagogia em torno de uma crítica à imposição de modelos de escolarização tradicionais que organizam propostas curriculares em torno de um modelo disciplinar e que se estende ao privilégio dado à dimensão cognitiva em detrimento das dimensões lúdica, criativa, afetiva, etc (Rocha, 1999) e que favoreceriam o apagamento das múltiplas linguagens da infância: oral, dramática, musical, gráfica, entre outras. Essa visão tem contribuído para uma nova definição das ações desenvolvidas com as crianças no sentido de "superar a visão adultocêntrica em que a criança é concebida apenas como um vir a ser e, portanto, necessita ser 'preparada para'". (Brasil, 2006, p. 8) Essa perspectiva também coloca em xeque a hegemonia da Psicomotricidade enquanto referência para a Educação Física, uma vez que se constituiu na escola e na educação infantil como um suporte para as aprendizagens cognitivas (Sayão, 2002), além de focalizar aspectos direcionados ao desenvolvimento de habilidades motoras preparatórias para as exigências de leitura e escrita nos anos de escolarização posteriores.

3 Trata-se da criação do "Grupo Independente de Estudos de Educação Física na Educação Infantil" (GIEFEI) que "surgiu da necessidade de dar continuidade às discussões que até então eram disponibilizadas apenas pelos cursos de formação continuada organizados pela Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Florianópolis. O Grupo de Estudos surgiu em 2004 com o objetivo de proporcionar um espaço e tempo de conhecimento, troca e debate sobre a realidade das práticas pedagógicas de Educação Física, em Núcleos de Educação Infantil (NEI) e Creches da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis." (Pandolfi et al. 2007: 760).

4 Identificaremos a professora de Educação Física da creche pesquisada por I.

5 Adorno lembra que não se trata de predicar o amor: "Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã: ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor, repito, é uma deficiência de todas as pessoas, sem exceção, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra estrutura do caráter, diferente da que pretendemos transformar". (Adorno, 1995: 134-135). O autor lembra ainda, que o apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto "o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. "O incentivo ao amor – provavelmente na forma mais imperativa, de um dever constitui ele próprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada." (Adorno, 1995: 135-136).

6 Segundo Raizer (2008: 20) "o enredo da brincadeira do boi-de-mamão possui regras explícitas que giram em torno da vida/morte e ressurreição do boi, num misto de dança e cantoria, caracterizando-se como jogos interpretativos que estão na representação da cultura popular." Personagens como a Maricota, além das figuras do médico, do curandeiro, do cavalo, da cabra, do macaco e do vaqueiro participam da cantoria que se faz acompanhada de pandeiros, sanfona e violão, entre outros. O folguedo do boi-de-mamão, no folclore catarinense é, segundo a autora, "uma das brincadeiras de maior atração popular. Existe no folclore brasileiro com os nomes mais diversos: bumba-meu-boi, boi-bumbá, boi-pintadinho, boi-de-reis, boizinho, boi da cara preta, boi-calemba etc." (Raizer, 2008: 20).

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